quarta-feira, 20 de abril de 2022

A fragmentação do saber

 



Na contemporaneidade todos nós corremos o risco de nos afogarmos no mar da (des)informação. No mundo atual os saberes ainda estão fragmentados, separados e por outro lado os problemas estão cada vez mais polidisciplinares, transversais, globais/regionais e planetários. Enquanto isso, somos inundados de informações por todos os lados, e muito pouca gente consegue transformar essas enxurradas de informação em conhecimento.

 

Me lembro da época em que os músicos iniciantes compravam aquelas revistinhas de violão que facilitavam as cifras, trago esse exemplo para ilustrar uma tendência muito comum das pessoas em quererem facilitar aquilo que é muito complexo. E isso contribui enormemente para a fragmentação do saber.

 

A hiperespecialização é resultado de uma sociedade que há muito tempo vem abandonando o seu interesse pelo “todo”, estamos indo na contramão dos gregos e aceitando os pressupostos cartesianos sem questionarmos.

 

Assim a hiperespecialização acaba impedindo a visão global do problema, e aquilo que é essencial passa a ser diluído ou deixado de lado. Quantas vezes nós fomos ao médico e de pronto, somos encaminhados para outro que seria o especialista.


É um médico para cada parte do corpo, com isso ficamos reféns de um imenso grupo de profissionais que estão esquecendo de pensar o corpo humano em seu conjunto, pois estão presos as partes. Existe uma gama muito pequena de profissionais da área da saúde que ainda ousam a tratar o corpo humano como todo, esses  são sem dúvidas os melhores profissionais da área e tem aqui o seu devido respeito.


Edgar Morin em seu livro: “a cabeça bem feita”: afirmar que “o desafio de pensarmos o todo é um desafio da complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o efetivo, o mitológico são inseparáveis e existe um tecido independente”.


Em outras palavras: o complexo deve ser tratado como complexo, não podemos mais caluniar a realidade, simplificando-a. O que mais me chama a atenção é que quanto mais a crise aumenta, mais aumenta a incapacidade de se pensar a crise. Se fala muito em reforma da previdência, mas o que de fato precisamos é de uma mudança urgente do nosso sistema de educacional, esse sim precisa ser restaurado para as próximas gerações. Como canta o rapper Criolo “Ainda há tempo”.


O agravamento da crise que assola nosso país se deve muito ao fato da política econômica do Paulo Guedes estar desvinculada das outras dimensões humanas e sociais que são de certa forma inseparáveis. Ele o Paulo Guedes se recusa a enfrentar a complexidade econômica brasileira, de tal modo que o ministério da economia é um dos poucos ministérios ocupados por alguém que tem o preparo técnico para assumir a pasta, mas que ao mesmo tempo é o ministério mais atrasado humanamente falando. 


Hayek dizia acertadamente que “ninguém pode ser um grande economista se for somente um economista”, eu acrescento: não basta ser um economista é necessário ser também um poeta. Hayek também afirma que "um economista que só é economista torna-se prejudicial e pode constituir um verdadeiro perigo”.


O nosso desafio hoje é pensarmos o problema do ensino, considerando de uma vez por todas os efeitos da fragmentação dos saberes e a incapacidade de articulá-los, com outras áreas. Segundo Edgar Morin o conhecimento só é conhecimento enquanto organização, que está relacionado com as informações e inserido no contexto destas. As informações constituem parcelas dispersas de saber. Precisamos conseguir integrar nossos conhecimentos para a condução das nossas vidas, para assim conseguirmos surfar em meio ao mar das informações. Mas para isso precisamos saber primeiro o que é conhecer.

 

(Alex Domingos)





sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Estamos perdidos?

 


Caro leitor, faz muito tempo que não escrevo algo por aqui, já que, conforme o tempo vai passando vamos aprendendo a escutar mais do que falar, pensar mais do que dizer. Convenhamos, um mundo onde as pessoas falam sobre tudo, a toda hora e a todo momento, faz crescer o valor do silêncio. 


As coisas andam tão absurdas que o ato de pensar e não correr para a rede social e comunicar aos demais o que foi pensado é como se fosse algum tipo de sacrilégio. É preciso ter opinião sobre tudo, se não você não é levado a sério. Temos que ser “youtuber-influencer”? Estamos perdidos?

 

Já faz um tempo que venho maturando as minhas ideias com a convicção de que só poderei escrever algo que realmente preste quando estiver lá com os meus sessenta anos, caso eu chegue lá, caro leitor. Torço para não passar disso. A vida demasiada longeva não costuma ser algo animador. Nesse meio tempo eu venho tentando transformar as minhas corriqueiras ideias e experiências, em poesia. Confesso que o meu propósito é procurar, procurar até encontrar a razão da minha procura, em outras palavras, quero inflar tanto a palavra até que ela estoure em poesia.

 

A filosofia contemporânea me parece um tanto quanto cansada, não raro, ela acaba tendo que se escorar em outras vertentes do pensamento para que assim seja validada pela comunidade científica. Acredito que produzir filosofia na contemporaneidade é algo desafiador. Uma hora dessas o pensamento filosófico há de ser repreendido por aqueles que não conseguem filosofar. Desde Sócrates foi assim.

 

Pelas experiências que eu tive, percebi que as pessoas se zangam facilmente quando você mostra o seu poder crítico, quase sempre querem tirar uma lasquinha disso. Também querem mostrar que pensam criticamente, porém, sem ter as bases corretas para tal, por isso cometem erros grosseiros, talvez pela ânsia de filosofar da noite para o dia.


Faz algum tempo que venho alertando sobre os perigos de ser auto didata, digo em qualquer coisa que seja. O Brasil viu de perto o caso do Olavo de Carvalho que deturpava tudo que tocava, e ainda assim conseguiu influenciar tanta gente, acredito que isso só foimpossível pelo fato do Brasil ser um país onde há muitas pessoas sem pensamento crítico e sem o cultivo do saber filosófico.


Como no caso do Monark que por ignorância e um pouco de prepotência juvenil e mal caratismo, defendeu a existência de um partido nazista, coisa tão absurda, que só jovens neoliberais com fetiche em liberdade defenderia. Creio que até hoje ele não tenha entendido tamanha repercussão. Na cabecinha dele ele só se expressou incorretamente. Nesse caso o cancelamento veio a calhar, mas não sejamos tão otimistas, ele só foi extirpado do podcast por causa de dinheiro das empresas patrocinadoras, não foi pelo bom senso ou algo do tipo. O Monark foi engolido pela mão invisível do mercado, algo que ele tanto defendeu em suas falas vomitativas.


Quem dera eu tivesse a clareza de um Cioran (filósofo romeno), eu já teria sido cancelado há muito tempo. Não por burrices como do Monark, mas por ousar a pensar a partir da fatalidade. Nem sempre consigo, mas as vezes tenho uns “insides” muito pertinentes, porém o niilismo e a minha preguiça existencial não me permitem fazer mais do que eu faço. Tenho bons momentos de clareza, no restante do meu tempo eu bebo cerveja e escrevo poesias.


Tenho a impressão de que o ser humano caminha num imenso labirinto sem ter o fio para conduzi-lo. Se estamos perdidos; isso não sei caro leitor, só tenho uma vaga impressão sobre isto. Na verdade eu só escrevi este texto para dizer que estou de volta aqui no blog, e é só isso, se chegou até aqui, aquele abraço, deixe seu like, compartilhe, ative o sininho e tchau!


(Alex Domingos)

 

segunda-feira, 25 de maio de 2020

O fim do Brasil?






“O passado é lição para se meditar e não para se reproduzir”. (Mário de Andrade, prefácio Interessantíssimo)

“Sempre enfezei ser eu mesmo. Mau mas eu”. (Oswald de Andrade, Ponta de Lança)



Gostaria que fosse só mais um texto meu falando sobre algum conceito inquietante da filosofia. Talvez teria falado algo sobre o pensamento Descolonial de Mignolo, ou sobre a questão do “Entre Lugar” discutida por Silviano Santiago, porém, no Brasil de hoje é impossível não falar do cenário político em que (sobre)vivemos.

Adoraria que o Filósofo Voltaire fosse brasileiro e presenciasse o que estamos vivendo hoje na política brasileira. No meio de suas ironias gênias, certamente exclamaria: “Écrasez I´Infâme”, ou seja, (esmagai o infame*). No caso, o (des)governo brasileiro. Sem dúvidas o Brasil se encontra hoje em seu ponto mais baixo. Neste ano, chegamos ao fundo do poço umas trezentas vezes, pois lidamos com duas pandemias: o covid-19 e a burrice.

Os intelectuais mostram, nós mostramos, o mundo mostra milhões de vezes o quanto quem votou no Bolsonaro cometeu um erro, mas essas pessoas a que chamamos hoje gentilmente de “gado”, ainda defendem esse homem asqueroso. É impressionante o nível de burrice dessa gente verdinha e amarela. Esse (des)governo é um insulto a nossa inteligência, digo mais, se o cérebro do presidente fosse uma dinamite, ele sequer explodiria o seu chapéu.

Talvez estejamos pagando o preço por escamotearmos o nosso passado autoritário, já que fomos o único país da América Latina incapaz de lidar com o seu passado obscuro. Safatle nos lembra que o Brasil é um país onde nenhum torturador foi parar na cadeia, e que pelo contrário, nesse exato momento, na Argentina, mil torturadores estão presos.

Para Safatle, isto é o resultado da necro-política brasileira, que desde a ditadura reforça os mecanismos de extermínios. Neste raciocínio, não houve o desmonte, nem a desarticulação destes aparatos, nos tornando também o único país da América Latina onde se tortura mais do que se fazia durante a ditadura militar, existem estudos sérios sobre isso.

Por isso, é urgente que o povo brasileiro aprenda com a sua história, é necessário mexer nas feridas e meditarmos a história do nosso país para que ela não seja mais reproduzida, porque sim, ela está se repetindo constantemente ou como tragédia ou como farsa, e assim, vamos presenciando este espetáculo farsesco onde o presidente que não tem formação nenhuma em medicina, impõe que seus ministros da saúde receitem cloroquina aos portadores do covid-19. Pasmem vocês, isto já aconteceu antes na história deste país.

   Quando a gripe espanhola chegou ao Brasil e se espalhou pelos cortiços do Rio de Janeiro, no dia sete de Setembro de 1918, já eram mais de 50 contaminados, no dia 8 de outubro de 1918 já haviam 88 soldados contaminados na via militar. Olhem que coisa, no dia 10 de Outubro já havia no hospital militar 400 pessoas infectadas.

O trágico deste episódio farsesco é que no dia 10 de Outubro o diretor geral de saúde, Carlos Seidl reuniu outros cientistas, com a presença da imprensa, e pasmem vocês, para defender a “benignidade da gripe”.  

Nas suas palavras: “não é a influenza espanhola é uma gripezinha comum”. E em seguida falou que “era sensacionalismo histérico da imprensa”, aqui qualquer semelhança é mera coincidência? No Brasil parece que essa gripe matou entre 35 a 40 mil pessoas. As semelhanças não param por aí, foi aqui também que surgiu o charlatanismo.

Como não havia órgãos de controle como a Anvisa hoje em dia, as pessoas começaram a criar remédios miraculosos para a gripe que se alastrava. Um deles foi a “Grippina”, que é muito semelhante com a cloroquina de hoje, não tinha nenhuma comprovação científica que garantisse a sua eficácia, mesmo assim começaram a vender esses pseudo-remédios para conter a gripe, entre eles até cachaça com limão, canja de galinha, entre outros.

E os paralelos continuam. Chegaram a dizer nos EUA que o quinino, medicamento recomendado para a malária seria eficaz contra o vírus. Por isso, que durante a guerra foi criado um drink que é conhecido até hoje: a Gintônica, cujo ingredientes são basicamente o gin, e a água tônica que contém quinino, nem precisa dizer que no Brasil o preço do quinino disparou.

O auge da epidemia no Brasil foi de Setembro de 1918 à Janeiro de 1919, matando mais ou menos 40 mil pessoas. Então aquele dito que: a história se repete como tragédia ou como farsa mais uma vez se mostra verdadeira.

O que preocupa é que além de enfrentarmos uma pandemia, enfrentamos também um presidente lunático e paranóico, que precisa ser extirpado do poder e preso, caso isso não aconteça, talvez estejamos assistindo o fim do Brasil, ou quem sabe o fim da picada. 


(Alex Domingos)   


domingo, 17 de maio de 2020

O “Zaratrusta” dos Leões: Nietzsche virou profeta?







Hoje nação luta contra nação,
Estamos no tudo é permitido
Não se esqueçam de Zaratustra,
Será que Nietzsche virou profeta? Virou!


Música Filhos Rebeldes - Banda Leões de Israel



Poucos sabem disto, mas a minha curiosidade em ler o filósofo alemão Friedrich Nietzsche se originou antes mesmo de eu ingressar na faculdade de Filosofia. A primeira vez que ouvi falar desse autor, foi através da música Filhos Rebeldes da banda de reggae: leões de Israel. Há pouco tempo lembrei-me deste episódio e resolvi contar para vocês.

Eu não fiz a faculdade de filosofia especificamente por causa desta música, mas foi ela que me apresentou a este autor. E ao escutá-la pela primeira vez, fiz o que poucos regueiros e regueiras fizeram até hoje, fui pesquisar quem era o tal do Zaratustra, e quem era aquele camarada que se chamava Nietzsche, pois ao meu ver eles seriam as peças chaves para o entendimento correto da música.  Por isso afirmo, não basta ouvir reggae, é preciso entender aquilo que está sendo cantando, é preciso ler as obras clássicas que estão fora desse segmento e deste estilo.

A curiosidade não parou na rápida pesquisa que fiz do filósofo, ela me acompanhou. Resolvi ir à biblioteca e tomar emprestado o livro intitulado “Assim falava Zaratustra”. Eu não aconselho ninguém a começar por este, mas esse foi o primeiro livro do Nietzsche que li. 

Apesar de não ter entendido muita coisa na primeira leitura, recordo-me que este livro me marcou profundamente, visto que ele questionava muito do que eu acreditava até então. Neste livro, o autor além de sintetizar toda a sua teoria cosmológica e filosófica, evidencia a decadência do cristianismo e a sua “metafísica para verdugos”. Achei fantástico a maneira como Nietzsche pintava as suas obscuras imagens filosófico-poéticas e como ele conseguia vasculhar os escombros da filosofia em busca do além-do-homem. 

Comecei a entendê-lo melhor, depois da terceira leitura, somando com os estudos sistemáticos do livro além de obras complementares, mesmo assim, a cada releitura deste clássico sempre me deparo com algo novo, que ainda acrescenta muito em minha vida, o livro é um clássico. Mesmo assim sempre aparecem aquelas pessoas que nunca leram um livro de filosofia tentando me ensinar aquilo que elas não sabem, para estas eu sempre deixei o meu riso.

Costumo frisar que se a filosofia ou qualquer outro tipo de conhecimento não contribui para a vida, se torna algo banal. Neste sentido, Nietzsche pode ser considerado o filósofo da vida. Os cristãos e os regueiros precisam ler mais esse pensador.

Como eu não gosto de ler somente aquilo que concordo, eu tenho a terrível mania de ler também aqueles livros “malditos” que me lançam no abismo e me arrancam da zona de conforto, não parei mais de ler este autor, cada livro uma sensação diferente e contraditória se manifestava, sensações que somente os leitores “desarmados” de suas convicções podem vivenciar. Nietzsche nos lembra que as pessoas de convicções são perigosas.

Após todo esse tempo estudando filosofia e pesquisando principalmente os escritos de Nietzsche, (não mais por causa da música e sim pela indentificação que tive com a sua obra), assim lembrei-me da música do Leões e resolvi escrever este texto, já que o reggae e as obras filosóficas estão inteiramente presentes no meu cotidiano.

Além dos mais eu procuro escrever somente aquilo que eu poderia escrever, levando em conta minhas vivências, sensações, pulsões etc... Afinal de contas são elas que avaliam o mundo a minha volta, em outras palavras aquilo que temos de vida dentro de nós é o que em última instância avalia o nosso “em torno” e avalia o nosso mundo.   

Quando ouvi a música pela primeira vez me deixei levar pela melodia e pelo aparente, digo, aparente senso crítico do compositor, que parecia querer contar algo misterioso e oculto em sua letra, e o Zaratustra e o Nietzsche eram peças fundamentais para a compreensão da música, como dito antes. 

Hoje quando escuto percebo que sim, a música tem um swing legal, começa com uma virada soluçante de bateria e segue com uma linha marcante de contra baixo que percorrerá a música toda, mas isso em si não mascara que a letra é profundamente vaga, ambígua e equivocada. Sem contar o erro juvenil do vocalista ao cantar “Zaratrusta” ao invés de “Zaratustra” que de fato é o personagem literário de Nietzsche.  

Antes de entrar de fato na letra da música, é bom lembrar que a filosofia de Nietzsche não é algo a ser seguida, o pensador não anuncia “verdades imutáveis” como pretende a bíblia e os cânones morais.  O filósofo é extremamente crítico das filosofias que pretendem fornecer a verdade para o mundo, por isto, foi um dos primeiros pensadores a formular pergunta que interroga: “para quê a verdade?” ou “quem nos obriga a procurar a verdade?” Pronto, bastou isso para bagunçar todo o tabuleiro de toda filosofia. 

Você caro leitor não é obrigado a ler Nietzsche (deveria?), porém quando constroem uma música com erros bobos e inversão de conceitos, e mais que isso, quando alguns regueiros tentam te ensinar algo que sequer leram, eu preciso intervir e mostrar que existe um equívoco quanto a isso.

Objetivo deste texto é mostrar a errônea inserção de Nietzsche e Zaratustra nesta letra de reggae, erro que eu só percebi muitos anos depois de ter ouvido a letra pela primeira vez e cuja a única virtude é nos apresentar um grande pensador para os ouvintes amantes de reggae que não conheciam ou não conhecem esse filósofo. 

A música começa afirmando que “alguns pensam que a vida é um rio/que encontrará seu caminho/outros acham que é um sonho e caem na iniquidade/se esquecem de que é uma benção de capacidades infinitas”. Esta eu considero a parte “menos pior” da letra, que até então não diz muita coisa, pois é profundamente rasa e vaga, além de ser carregada de moralismo barato, e até aqui não acrescenta nada de concreto na vida do ouvinte. 

Dizer que as pessoas caem na iniquidade e que se esquecem que a vida é uma benção de capacidades infinitas, é dizer, à grosso modo, que temos que seguir os códigos morais de uma determinada religião, (seja ela qual for), e que é preciso que as pessoas sintam-se culpadas por suas condutas “más”, já que, cair na iniquidade pressupõe que não estão de acordo com as normas estabelecidas por essa religião ou até mesmo a sociedade, algo totalmente contrário ao que o Nietzsche defendia, calma já explico! As vezes me recordo de algumas coisas e fico pensando e até hoje não consigo entender como pude gostar de bandas como Tribo de Jah, Mato Seco e Ponto de Equilíbrio. Não consigo entender. 

A questão é: quem criou os valores? Quem foi o primeiro na história da humanidade a dizer que tal ação é boa e determinada ação é ruim ou má? É preciso entender que os valores são construções humanas, demasiado humanas e possuem uma história e que os códigos morais, não vieram diretamente do céu trazidos por Deus ou um anjo. Por favor leiam Genealogia da moral de Nietzsche que vocês irão entender. Até aqui tudo bem. Vamos a segunda parte da letra.

A pergunta que me fiz durante algum tempo é: porquê mencionar o filósofo nesta letra sem pé nem cabeça? Hoje percebo que as frases desta música vão totalmente contra aquilo que Nietzsche defendia. Mais adiante lançarei a minha hipótese, prometo não demorar muito, caro(a) leitor(a), antes vamos para a segunda parte da letra que piora um pouquinho: “a verdade cobre a terra/ assim como a água cobre o mar. Não fuja da suprema ordem/ nada disso vai adiantar.”


Primeiro que a verdade para o Nietzsche se trata de um preconceito moralista inventado para legitimar a superioridade de determinados valores metafísicos que de fato são muito cafonas e negam a vida. Ao meu ver os regueiros ainda são muito moralistas e ingênuos. Talvez Solano tenha escrito essa letra sabendo que poucos regueiros iriam ter senso crítico para poder questioná-la, talvez.

Resumindo: a verdade é joguinho de poder, Foucault também havia constatado isso. Nós, os bons, encontramos a verdade e quem não a segue é mal. Porém, é preciso enxergar que existem pensamentos tão elevados que nem precisam ser verdadeiros, visto que elevam o ser humano, elevam a vida, em certo ponto essa música nega a vida e exalta valores morais metafísicas supra-sensíveis que nem são tão bem definidos assim na música.  

O que seria suprema ordem? Somente essa frase daria alergia em Nietzsche, pois para ele a única coisa de superior é a vida, neste raciocínio não existem valores que transcendam a vida, pois é ela que em última instância avalia e cria os valores (ao menos deveria), ou seja, não existe suprema ordem, ou valores que sejam superiores a vida, “o cristianismo é o platonismo para o povo”. Estamos parados ainda no platonismo ingênuo, e o reggae tem sim um pezinho no cristianismo.


É bom lembrar que Solano Jacob é o autor da música e na versão de estúdio ele pergunta e responde logo depois: “será que Nietzsche virou profeta? Virou!”. Deste modo, segundo o compositor, Nietzsche havia se tornado um profeta, até certo ponto concordo que sim, mas não pelos motivos mencionados na letra.

Nietzsche em larga escala é uma espécie de anti-profeta e penso que o Solano Jacob foi no mínimo equivocado ao citar o pensador nessa música, confesso até que tenho dúvidas de que ele tenha realmente lido o “Zaratustra” inteiro. Acho que com o tempo ele deve ter percebido o erro que cometeu, tanto é que na versão ao vivo ao invés de falar “virou!”, ele sabiamente troca e canta “uou uou”. Será que se arrependeu? 

Mas aqui eu lanço a minha hipótese: Solano Jacob não estaria usando de uma ironia ao se referir a Zaratustra e a Nietzsche, como aqueles que atestaram a “morte de deus?”, ou o fim da metafísica? Consequentemente borrando os princípios caducos de bem e de mal e alertando para o perigo de uma sociedade em que os valores perderam o sentido? O niilismo não seria um hóspede sinistro a se combater? Eu quero muito acreditar que Solano Jacob pensou nesta possibilidade, pois seria bem mais coerente tanto com o reggae como com a filosofia nietzschiana.   


Para finalizar, acredito que o reggae deve abandonar a velha agenda e começar a construir um novo caminho. Existe um leque gigante de possibilidades para ser trabalhado e construído. É um desperdício insistir em velhas pautas. Vivemos em novos tempos, onde a internet e a virtualidade, a sexualidade estão presente em nosso dia a dia.

O reggae precisa acertar a mão sobretudo na crítica social que não deve ser feita de qualquer maneira e ficar atento as novas questões. Na nossa sociedade existem mudanças técnicas, econômicas, sociais, morais e políticas, entre outras.

É preciso ler, é preciso aprender a aprender e desaprender a nossa sociedade enquanto todo. O reggae precisa estar disposto a isto, mesmo que custe abrir mão de alguns valores tradicionais da cultura reggae.

Nos dias de hoje o virtual e a política são a tônica da nossa sociedade pós-moderna. É necessário diluir isso artisticamente e apresentar de uma forma poética, expressiva e com uma potência visceral para que isso faça as pessoas pensarem.


É preciso ler, é preciso aprender a aprender e desaprender a nossa sociedade enquanto todo, o reggae precisa estar disposto a isto, mesmo que custe abrir mão de alguns valores tradicionais da cultura reggae.

Nos dias de hoje o virtual e a política é a tônica da nossa sociedade pós-moderna. É necessário diluir isso artisticamente e apresentar de uma forma poética e expressiva para que isso faça as pessoas pensarem.

Não basta tocar reggae para aumentar o número de seguidores é urgente que se estimule as pessoas a pensarem por si mesmas. Mas e Zaratustra? E Jah? Nietzsche diria: - Jah está morto! Mas essa, ah! Essa, é uma outra conversa.
   
(Alex Domingos)

terça-feira, 23 de abril de 2019

Performance poética e alteridade através do espelho













Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh! Pireneus! Ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! Abraço no meu leito as melhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios; eu piso a terra como quem descobre a furto Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos! Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, mas um dia afinal eu toparei comigo...Tenhamos paciência, andorinhas curtas. Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo.


Mário de Andrade. Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 221.

A performance da boa poesia talvez seja, aquela que nos arranca um suspiro e nos faz calar por alguns segundos. Observar-se ainda, aquelas que fazem com que ergamos a cabeça, dando forma aos nossos mais íntimos pensamentos, assim olhamos para o alto em silêncio, pois, sua performatividade se propaga pelo corpo, e também é incorporada e experienciada pelo leitor, que já não é mais o mesmo que se colocou a ler a primeira frase.

Ora, se existem aquelas poesias da qual não nos resta mais nada, além do calar-se diante do termino da leitura, o silêncio é algo que merece ser evidenciado nesta relação performática com a poesia. Agambem, em seu “micro-texto”: (a ideia do silêncio), se vale de uma fábula da antiguidade para sublinhar a importância do silêncio, nela lê-se este apólogo:
Os atenienses tinham por hábito chicotear a rigor todo candidato a filósofo, e, se ele suportasse pacientemente a flagelação, poderia então ser considerado filósofo. Um dia, um dos que se tinham submetido a essa prova exclamou, depois de ter suportado os golpes em silêncio: ”Agora já sou digno de ser considerado filósofo!” Mas responderam-lhe, e com razão: “Tê-lo-ias sido, se tivesses ficado calado” [1].

Acredito que tanto a filosofia como a poesia se relacionam com a experiência do silêncio. Todavia, o senso comum concebe o silêncio como a ausência de som ou até mesmo de expressão, porém, ele – o silêncio tem muito a nos dizer. 

Como na fábula, onde não bastava o filósofo suportar pacientemente a flagelação, teria também que fazer a experiência do silêncio para tornar-se filósofo. Ainda, segundo Agambem: um belo rosto é talvez o único lugar onde há verdadeiramente silêncio [2]. O rosto carrega consigo a linguagem do silêncio, pois, é no silêncio que o rosto diz.

Isto me lembra das diversas vezes que algumas pessoas do meu círculo íntimo de amizade me olhavam, e esse olhar fazia com que eu soubesse exatamente o que elas gostariam de me dizer, não com palavras, mas com o silêncio que emanava do rosto. 

O rosto que me dizia algo, eram o rostos de outras pessoas, aqui, quando falo sobre a outras pessoas, ou o “outro” como manifestação da linguagem corporal, estabeleço a relação de alteridade, pois, alteridade pressupõe o “outro” ou “outrem”.

A alteridade indica a presença de um Outrem que não se anula na relação. Independentemente da verdade ou mentira que ele venha a dizer, o seu rosto já é expressão. Lévinas compreende que a alteridade, enquanto relação ética, é anterior a qualquer afirmação, seja ela verdadeira ou falsa. O signo verbal é posterior à expressão do rosto [3].

A relação de alteridade quando estou frente à outra pessoa, ainda que parecida, é distinta daquela relação de alteridade, quando estou frente a frente comigo mesmo, ou seja, através do espelho. Ao olhar no espelho, coloco-me face a face comigo mesmo, o que fica evidente é que, eu sou o outro de mim mesmo (alteridade). Assim, a distinção está na transparência deste olhar. 

Ora, a relação de alteridade, com uma pessoa distinta, não nos permite conhecer o outro como conhecemos a nós mesmos, (embora muitas vezes este conhecimento seja ficcional), por mais que o rosto da outra pessoa fale, algo ainda permanecerá velado. O que não ocorre, quando me coloco diante do espelho, onde não tenho nada para esconder de mim mesmo, e onde as glórias e imperfeições atravessam o espelho e tornam-se tão claras, como na poesia chamada retrato da escritora Cecília Meireles:

Retrato – Eu não tinha esse rosto de hoje/assim calmo, assim triste, assim magro/ Nem estes olhos tão vazios/Nem o lábio amargo./Eu não tinha estas mãos sem força/ Tão paradas e frias e mortas/ Eu não tinha este coração/ Que nem se mostra./ Eu não dei por esta mudança/ Tão simples, tão certa tão fácil: - Em que espelho ficou perdida minha face? [4]

No espelho lidamos com o óbvio, aqui com o qual não tivemos “tempo” de ter visto antes, talvez pela correria, vinda, desde muito tempo, através do jargão “time is Money”. Assim, nos perdemos no cotidiano, porém, é no espelho e em sua alteridade que procuramos a nós mesmos, esta questão nos assusta, a obscenidade do espelho nos assusta, como nas palavras de Boudrillard:

Quando as coisas se tornam demasiadamente reais, quando elas são dadas imediatamente, quando existem como realidade concreta, quando estamos neste curto-circuito que faz com que as coisas se tornem cada vez mais próximas, estamos na obscenidade [5].

A cada olhadela no espelho, em nossa face aflora a “realidade”, pois, a relação de alteridade está demasiadamente próxima, está logo ali, - no espelho. É nele que enxergamos as falhas e imperfeições que tanto aflige o ser humano, algumas pessoas pensam até em quebrá-lo, ou jogá-lo para longe. “Quebrar o espelho é deixar de ser para ser, transver [6].
O espelho remete a loucura, a loucura de nos vermos fora de nós mesmos. É esta loucura que o ator sente cada vez que entra no espaço da cena, ele cria uma imagem dentro e fora de si mesmo. Ele é e não é ao mesmo tempo. Narciso se apaixona pela própria imagem e perde a si mesmo. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo narciso que ele viveria apenas enquanto não se visse [7].

Existe um trecho na música, “Índios”, da banda de rock brasileira, Legião Urbana, que dialoga magistralmente com esta poesia do Guimarães Rosa, na letra que é cantada por Renato Russo, evidencia a relação da sociedade com o espelho, na música ouve-se:

Quem me dera ao menos uma vez/provar que quem tem mais do que precisa ter/quase sempre se convence que não tem o bastante/ Fala demais por não ter nada a dizer/ Quem me dera ao menos uma vez/ Que o mais simples fosse visto/ Como o mais importante/ Mas nos deram espelhos/ vivemos num mundo doente [8].

A frase: “Fala demais, por não ter nada a dizer”, traz à tona novamente o tema do silêncio, que talvez se manifesta não quando não dizemos nada, e sim, talvez, quando dissemos tudo. Narciso se perdeu, por conta de ver seu reflexo espelhado na água, sua doença foi o espelho. De certa forma, o espelho é o reflexo de uma sociedade individualista e que presa no mais das vezes pelo seu próprio eu. Na maior parte, o que impera é a dificuldade de lidarmos com o espelho, por isso, me pergunto o porquê desta dificuldade?

Ora, estamos muito magros, ora estamos gordos em demasia, ora não suportamos o simples olhar, como naquela música do Engenheiros do Havaí que diz: “Só me acorde quando o sol tiver se posto/ eu não quero ver meu rosto antes de anoitecer”:

Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - então percebeu o seu mistério [9].

Contudo, nem todos mantêm uma relação de estranhamento quando se olha no espelho, como no conto “Os espelhos”, da Clarice, em que ela brinca com essa relação de alteridade diante do seu reflexo, visto que, há pessoas que ao mesmo tempo em que olham a sua face no espelho, conseguem a isenção de si, como se aquele rosto ali clamando por uma reflexão mais demorada, não quisesse dizer nada. Existe também aquelas pessoas que conseguem vê-lo sem se ver e quem entende sua profundidade sem ser vazio. Todas essas são diferentes perspectivas sobre a relação de alteridade do eu com o espelho. 

(ALEX DOMINGOS)



[1]AGAMBEM.idéia da prosa, p.110.
[2]AGAMBEM.idéia da prosa, p.112.
[3]CARVALHO.Alteridade e diálogo, p.110.
[4]MEIRELES.Ontologia poética, p.128.
[5]BAUDRILLARD. Senhas, p.30.
[6]BARROS.O livro sobre o nada.p, 123.
[7]ROSA. Primeiras histórias. p, 69.
[8]URBANA, Legião. Álbum Dois.Música 12.
[9] LISPECTOR,Os espelhos. Disponível em:<http://claricelispector.blogspot.com.br/2008/02/os-espelhos.html>. Acesso em: 05/07/15.