segunda-feira, 4 de julho de 2016

Mustafary: os hipócritas são os outros!



Julgar e condenar moralmente é a vingança preferida das almas limitadas sobre aquelas que são menos que elas. (NIETZSCHE. Além do bem e do mal, p.57)
Um dos mais recentes personagens do comediante Marco Luque se chama Mustafary. Pra quem não o conhece ainda, Mustafary é um dreadlock, baiano e fundador do “Mustafaryanismo” que posta uma variedade de vídeos no youtube, mostrando o seu “íntimo contato” com a natureza e as suas peculiaridades. Algumas semanas atrás, comecei a prestar atenção em algumas de suas performances e confesso ter gostado do personagem.
Ultimamente tenho refletido o por que do personagem Mustafary nos parecer tão engraçado, afinal, por que rimos dele? Ora, é evidente que o personagem satiriza de maneira inteligente e bem humorada o comportamento da galerinha “alternativa” e dos drealocks que se dizem “amantes da natureza”, que ora clamam para que amemos a natureza, mas que no instante seguinte se irritam com a pedra, ou seja, não rimos tanto quando nos conta uma simples piada, tão pouco quando diz palavras erradas, mas, sobretudo, gargalhamos quando percebemos a sua hipocrisia, pois nos divertimos com ela, a hipocrisia alheia.
O humor sempre contou com a hipocrisia, isso não se pode negar, ela sempre esteve presente no palco, muito utilizada como um artifício do artista na comédia. Nesse sentido, estou convencido de que achamos Mustafary tão legal porque ele nos faz rir devido a sua notável hipocrisia. Contudo, o que significa hipocrisia? O que queremos dizer quando chamamos alguém de hipócrita?
Observando a etimologia da palavra, cuja a origem é grega - hupokrisía remete a ação de desempenhar um papel, a própria arte do ator – de interpretar. Mas, grande parte das pessoas ainda entende a hipocrisia como dissimulação (dissimulatio), ou melhor, fingir algum tipo de sentimento. Como nos vídeos do Mustafary que se coloca como alguém que ama incondicionalmente a natureza, porém, passados alguns minutos pragueja contra a mesma. O ato de “fingir” o sentimento de amor pela natureza é considerado por grande parte das pessoas como a manifestação da hipocrisia. Por uma lado Musta ama a natureza, por outro a amaldiçoa.
Amar a natureza somente em seus aspectos bonitos e prazerosos é fácil, contudo, basta a natureza mostrar a sua força nos impedindo de agir ou nos privando de algo, pronto! Ficamos zangados com ela, reclamamos sem parar do calor infernal! Logo depois, que frio insuportável! Rimos de Mustafary porque no fundo nos identificamos muito com ele. No dia a dia, nos deparamos com vários tipos que não se resumem somente a hipocrisia, mas que, de certa forma, se trata da insanidade da mente contemporânea, percebam: o serumaninho José, buzina para o carro da frente de seu Ford, pois o semáforo abriu, mas José se irrita quando alguém, na próxima sinaleira, buzina para ele pelo mesmo motivo. Esta prática soa como algo insano, não como hipocrisia.
Já Mustafary é um “rasta” diferente, visto que ele não aponta o dedo e acusa ninguém de “hipócrita” como muitos o fazem, nos dias de hoje quem dá atenção para alguém que faz esse tipo de coisa? Acusar moralmente alguém de hipócrita é uma prática ressentida cristã, digo tranquilamente que quem o faz, está negando a própria vida, já que quem aponta o dedo para chamar o outro de hipócrita está convencido de que está do lado dos “santos”, aqueles serumaninhos que não possuem hipocrisia, deste modo, ou está convencido de ser “santo” ou quer em seu íntimo se convencer disto, quem leu Genealogia da Moral sabe do que estou falando. Todavia, as perspectivas acerca da hipocrisia ainda estão submetidas a uma valoração ressentida da moral cristã, porque é resquício dela, porém, é possível reavaliá-la partindo de um ponto de vista filosófico.
Visto isso, ao contrário de que muitos pensam a hipocrisia não é um defeito da sociedade humana, digo que é o lubrificante das relações sociais, pois é muito difícil existir a sociedade sem hipocrisia. Nietzsche afirmou certa vez que “a verdade é uma mentira socialmente aceita”, quer dizer que a mentira nos ronda cotidianamente, porém como “verdade”. Neste sentido, não seria possível a vida comunitária se falássemos a “verdade” vinte e quatro horas por dia, ninguém nos suportaria, “o quanto de verdade podemos suportar?”. Imaginem um relacionamento baseado somente na “verdade”, acabaria nas primeiras vinte e quatro horas.
Existem sim, aqueles “lampejos de verdade”, e de repente somos incapazes de dizer que havíamos gostado de uma comida intragável, por exemplo. São poucas as exceções. Contudo, não há benefício nenhum em denunciar a hipocrisia alheia, por exemplo, não há nada demais em dizer que o rei está nu, quando todos já o sabem disso, e todos nós aceitamos que estamos fingindo não ver. Por isso, denunciar moralmente a hipocrisia é um ato sem sentido e pueril daqueles que não reconhecem a sua própria hipocrisia.
Seguindo o raciocínio do filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso, jamais poderíamos dizer que Mustafary é um hipócrita, tendo em vista que: “um homem não pode entrar no mesmo rio duas vezes, pois ao entrar pela segunda vez o homem já não é o mesmo e tão pouco o rio”.  Deste modo, se Mustafary afirma amar incondicionalmente a natureza numa hora e no instante seguinte a amaldiçoa é porque a impetuosidade das coisas e a velocidade da mudança (DEVIR), fez com que ele pensasse de outra maneira, ora somos seres em constante construção, onde há vida há possibilidade de mudança. Num instante Musta ama o serumaninho-cachorro no outro diz: “sai pra lá! Morre diabo”, seria essa uma prática totalmente válida segundo o raciocínio heraclitiano, visto que as águas do rio se passaram, fazendo-o mudar de opinião, em outras palavras a metamorfose ambulante (RAUL) aconteceu:
O hipócrita que representa sempre o mesmo papel deixa enfim de ser hipócrita. [...] Se alguém quer parecer algo, por muito tempo e obstinadamente, afinal lhe será difícil ser outra coisa. A profissão de quase todas as pessoas, mesmo a do artista, começa com a hipocrisia, com uma imitação do exterior, com uma cópia daquilo que produz efeito. Aquele que sempre usa a máscara do rosto amável terá enfim poder sobre os ânimos benévolos, sem os quais não pode ser obtida a expressão de amabilidade – e estes por fim adquirem poder sobre ele, ele é benévolo. (NIETZSCHE. HH, §51,).
A hipocrisia como dissimulação e fingimento se tornou um conceito sem sentido e ultrapassado como já foi dito, por isso temos que buscar um modo distinto de pensar isso que a sociedade chama hoje de “hipocrisia”. A intenção desse texto não é trocar um conceito fechado por outro, mas sim, abrir espaço para uma nova discussão acerca deste assunto, ampliando os horizontes. São de uma bobagem gigantesca aqueles discursos que pregam uma sociedade sem hipocrisia e blá blá, é de um idealismo infantil.
Por isso, não faço apologia a hipocrisia, em outras palavras, não peço para que sejam hipócritas, pelo contrário, procuro refletir a hipocrisia através de uma outra perspectiva, já que, a nossa sociedade não existe sem ela, o que nos resta é a consciência da nossa própria hipocrisia. Desta maneira, antes de apontarmos o dedo para o nosso vizinho num ato ressentido de chamá-lo de hipócrita, temos que voltar o olhar para dentro si, num ato reflexivo, visto que, quanto mais eu enxergo a minha hipocrisia, mais eu posso entendê-la e diminuí-la. Sartre afirmaria “o inferno são os outros”, eu diria: os hipócritas são os outros; nós quase nunca percebemos a nossa hipocrisia. Viva o Mustafaryanismo pae!
(Alex Domingos)


Referências
COSTA, Gustavo. Da Dissimulação à criação de si – aspectos da hipocrisia em Nietzsche. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de 2008 – Vol.1 – nº2 – pp.113-123.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humamo. Vol. II. 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bel e do mal. Editora: Hermus. São Paulo.