Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh! Pireneus! Ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! Abraço no meu leito as melhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios; eu piso a terra como quem descobre a furto Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos! Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, mas um dia afinal eu toparei comigo...Tenhamos paciência, andorinhas curtas. Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo.
Mário de Andrade. Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 221.
A performance da boa poesia talvez seja, aquela que nos arranca um suspiro e nos faz calar por alguns segundos. Observar-se ainda, aquelas que fazem com que ergamos a cabeça, dando forma aos nossos mais íntimos pensamentos, assim olhamos para o alto em silêncio, pois, sua performatividade se propaga pelo corpo, e também é incorporada e experienciada pelo leitor, que já não é mais o mesmo que se colocou a ler a primeira frase.
Ora, se existem aquelas poesias da qual não nos resta mais nada, além do calar-se diante do termino da leitura, o silêncio é algo que merece ser evidenciado nesta relação performática com a poesia. Agambem, em seu “micro-texto”: (a ideia do silêncio), se vale de uma fábula da antiguidade para sublinhar a importância do silêncio, nela lê-se este apólogo:
Os atenienses tinham por hábito
chicotear a rigor todo candidato a filósofo, e, se ele suportasse pacientemente
a flagelação, poderia então ser considerado filósofo. Um dia, um dos que se
tinham submetido a essa prova exclamou, depois de ter suportado os golpes em
silêncio: ”Agora já sou digno de ser considerado filósofo!” Mas
responderam-lhe, e com razão: “Tê-lo-ias sido, se tivesses ficado calado” [1].
Acredito que
tanto a filosofia como a poesia se relacionam com a experiência do silêncio.
Todavia, o senso comum concebe o silêncio como a ausência de som ou até mesmo
de expressão, porém, ele – o silêncio tem muito a nos dizer.
Como na fábula, onde não bastava o filósofo suportar pacientemente a flagelação, teria também que fazer a experiência do silêncio para tornar-se filósofo. Ainda, segundo Agambem: um belo rosto é talvez o único lugar onde há verdadeiramente silêncio [2]. O rosto carrega consigo a linguagem do silêncio, pois, é no silêncio que o rosto diz.
Como na fábula, onde não bastava o filósofo suportar pacientemente a flagelação, teria também que fazer a experiência do silêncio para tornar-se filósofo. Ainda, segundo Agambem: um belo rosto é talvez o único lugar onde há verdadeiramente silêncio [2]. O rosto carrega consigo a linguagem do silêncio, pois, é no silêncio que o rosto diz.
Isto me lembra
das diversas vezes que algumas pessoas do meu círculo íntimo de amizade me
olhavam, e esse olhar fazia com que eu soubesse exatamente o que elas gostariam
de me dizer, não com palavras, mas com o silêncio que emanava do rosto.
O rosto que me dizia algo, eram o rostos de outras pessoas, aqui, quando falo sobre a outras pessoas, ou o “outro” como manifestação da linguagem corporal, estabeleço a relação de alteridade, pois, alteridade pressupõe o “outro” ou “outrem”.
O rosto que me dizia algo, eram o rostos de outras pessoas, aqui, quando falo sobre a outras pessoas, ou o “outro” como manifestação da linguagem corporal, estabeleço a relação de alteridade, pois, alteridade pressupõe o “outro” ou “outrem”.
A alteridade indica a presença de um Outrem que
não se anula na relação. Independentemente da verdade ou mentira que ele venha
a dizer, o seu rosto já é expressão. Lévinas compreende que a alteridade,
enquanto relação ética, é anterior a qualquer afirmação, seja ela verdadeira ou
falsa. O signo verbal é posterior à expressão do rosto [3].
A relação de alteridade quando estou
frente à outra pessoa, ainda que parecida, é distinta daquela relação de
alteridade, quando estou frente a frente comigo mesmo, ou seja, através do
espelho. Ao olhar no espelho, coloco-me face a face comigo mesmo, o que fica
evidente é que, eu sou o outro de mim mesmo (alteridade). Assim, a distinção
está na transparência deste olhar.
Ora, a relação de alteridade, com uma pessoa
distinta, não nos permite conhecer o outro como conhecemos a nós mesmos, (embora
muitas vezes este conhecimento seja ficcional), por mais que o rosto da outra
pessoa fale, algo ainda permanecerá velado. O que não ocorre, quando me coloco
diante do espelho, onde não tenho nada para esconder de mim mesmo, e onde as
glórias e imperfeições atravessam o espelho e tornam-se tão claras, como na
poesia chamada retrato da escritora Cecília Meireles:
Retrato – Eu não tinha esse rosto de hoje/assim
calmo, assim triste, assim magro/ Nem estes olhos tão vazios/Nem o lábio
amargo./Eu não tinha estas mãos sem força/ Tão paradas e frias e mortas/ Eu não
tinha este coração/ Que nem se mostra./ Eu não dei por esta mudança/ Tão
simples, tão certa tão fácil: - Em que espelho ficou perdida minha face? [4]
No espelho lidamos com o óbvio, aqui com
o qual não tivemos “tempo” de ter visto antes, talvez pela correria, vinda,
desde muito tempo, através do jargão “time
is Money”. Assim, nos perdemos no cotidiano, porém, é no espelho e em sua
alteridade que procuramos a nós mesmos, esta questão nos assusta, a obscenidade
do espelho nos assusta, como nas palavras de Boudrillard:
Quando as coisas se tornam demasiadamente
reais, quando elas são dadas imediatamente, quando existem como realidade
concreta, quando estamos neste curto-circuito que faz com que as coisas se
tornem cada vez mais próximas, estamos na obscenidade [5].
A cada olhadela no espelho, em nossa
face aflora a “realidade”, pois, a relação de alteridade está demasiadamente
próxima, está logo ali, - no espelho. É nele que enxergamos as falhas e
imperfeições que tanto aflige o ser humano, algumas pessoas pensam até em
quebrá-lo, ou jogá-lo para longe. “Quebrar o espelho é deixar de ser para ser,
transver [6].
O espelho remete a loucura, a loucura de nos
vermos fora de nós mesmos. É esta loucura que o ator sente cada vez que entra
no espaço da cena, ele cria uma imagem dentro e fora de si mesmo. Ele é e não é
ao mesmo tempo. Narciso se apaixona pela própria imagem e perde a si mesmo.
Tirésias, contudo, já havia predito ao belo narciso que ele viveria apenas
enquanto não se visse [7].
Existe um trecho na música, “Índios”, da
banda de rock brasileira, Legião Urbana, que dialoga magistralmente com esta
poesia do Guimarães Rosa, na letra que é cantada por Renato Russo, evidencia a
relação da sociedade com o espelho, na música ouve-se:
Quem me dera ao menos uma vez/provar que quem
tem mais do que precisa ter/quase sempre se convence que não tem o bastante/
Fala demais por não ter nada a dizer/ Quem me dera ao menos uma vez/ Que o mais
simples fosse visto/ Como o mais importante/ Mas nos deram espelhos/ vivemos
num mundo doente [8].
A frase: “Fala
demais, por não ter nada a dizer”, traz à tona novamente o tema do silêncio,
que talvez se manifesta não quando não dizemos nada, e sim, talvez, quando dissemos
tudo. Narciso se
perdeu, por conta de ver seu reflexo espelhado na água, sua doença foi o
espelho. De certa forma, o espelho é o reflexo de uma sociedade individualista
e que presa no mais das vezes pelo seu próprio eu. Na maior parte, o que impera
é a dificuldade de lidarmos com o espelho, por isso, me pergunto o porquê desta
dificuldade?
Ora, estamos
muito magros, ora estamos gordos em demasia, ora não suportamos o simples
olhar, como naquela música do Engenheiros do Havaí que diz: “Só me acorde
quando o sol tiver se posto/ eu não quero ver meu rosto antes de anoitecer”:
Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo
isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua
profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço
transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - então percebeu o
seu mistério [9].
Contudo, nem
todos mantêm uma relação de estranhamento quando se olha no espelho, como no
conto “Os espelhos”, da Clarice, em que ela brinca com essa relação de
alteridade diante do seu reflexo, visto que, há pessoas que ao mesmo tempo em
que olham a sua face no espelho, conseguem a isenção de si, como se aquele
rosto ali clamando por uma reflexão mais demorada, não quisesse dizer nada. Existe também
aquelas pessoas que conseguem vê-lo sem se ver e quem entende sua profundidade
sem ser vazio. Todas essas são diferentes perspectivas sobre a relação de
alteridade do eu com o espelho.
(ALEX DOMINGOS)
[1]AGAMBEM.idéia da prosa, p.110.
[2]AGAMBEM.idéia da prosa, p.112.
[3]CARVALHO.Alteridade e diálogo, p.110.
[4]MEIRELES.Ontologia poética, p.128.
[5]BAUDRILLARD. Senhas, p.30.
[6]BARROS.O livro sobre o nada.p, 123.
[7]ROSA. Primeiras histórias. p, 69.
[8]URBANA, Legião. Álbum Dois.Música 12.
[9] LISPECTOR,Os espelhos. Disponível em:<http://claricelispector.blogspot.com.br/2008/02/os-espelhos.html>.
Acesso em: 05/07/15.